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Em seu décimo longa, Wes Anderson homenageia a influência das narrativas curtas na criação de seu próprio processo artístico.

A brevidade é um aspecto narrativo que, nas mãos de grandes autores, intensifica o potencial impacto de uma obra. Narrativas curtas foram minha introdução à literatura, do conto literário à crônica jornalística, há um charme único nesse tipo de condução discursiva, que toma para si a concisão como marca principal, mas sem se deixar restringir pela dimensão reduzida do gênero, muito pelo contrário, são narrativas que utilizam de uma estrutura mais breve com propriedade, absorvendo cada suposta limitação de síntese, como uma oportunidade de elevar o conteúdo para um envolto de longevidade e intensidade da mensagem.

Apesar de serem obras de tamanho reduzido, a boa crônica não é aquela que se limita a falar apenas o necessário, num conceito de obra sem “excessos”, pressupondo uma objetividade que, se tratando de uma arte cuja essência está justamente no campo da sentimentalidade, da inexatidão e da simbolização, deveria ser desprezada. O poder da concisão narrativa está na ambiguidade, de se atingir o leitor tão precisamente, como uma dose na medida certa, mas que parte sempre de um relato mutável, centrado na forma como o autor observa o mundo a sua volta, e fruto exclusivo da exposição desse olhar por meio da narrativa.

O décimo filme do diretor Wes Anderson, "A Crônica Francesa", lançado em 2021, utiliza do poder da concisão narrativa para fabular a história da revista The French Dispatch, uma publicação de um jornal americano sobre a vida numa pequena cidade francesa no século XX, com crônicas que perpassam os mais variados assuntos da vida urbana, divididas entre as seções: Cor Local, Arte & Artistas, Política & Poesia, Sabores & Cheiros e Obituário. O editor da revista, vivido por Bill Murray, embora seja rígido com o dinheiro que seus escritores gastam às suas custas, ainda sim, preza primariamente pela liberdade criativa dos autores, recomendando apenas que “seja lá como você escreva, apenas faça parecer que você escreveu dessa forma de propósito”. Quando logo no início do filme, o espectador toma conhecimento do falecimento do editor, e que o próprio havia deixado ordens para a revista ser descontinuada em caso de sua morte, o público é então apresentado à crônicas que perpassam as variadas seções da revista, enquanto os colaboradores de forma conjunta tentam escrever o último - e mais importante - obituário da história da revista.

         

São vários os tributos prestados por Wes Anderson durante todo o filme, que vão de referências a artigos e crônicas existentes na vida real, que acabam por inspirar as histórias presentes no longa, como também um culto à todo universo que ronda a mítica da palavra, manifestada na narrativa como um certo encantamento consciente, onde o diretor homenageia autores e elementos da cultura que o influenciam diretamente, mas sem deixar de fazer um filme sobre seu próprio processo criativo. A crônica como retratação urbana, torna a imponente cultura francesa numa presença que permeia toda a temática do filme, do uso da linguagem à referenciação de acontecimentos como Maio de 68, base da crônica Revisões para um Manifesto. A primeira crônica, situada na seção Cor Local, é a mais curta do filme, e apresenta o cronista em seu estado natural de observação dos aspectos renegados pela sociedade. Uma história sobre a mutação do espaço com a ação do tempo, o objeto de observação em questão é a própria cidade fictícia onde o filme se passa, e todas as belezas e feiuras inerentes ao espaço urbano. As crônicas seguintes são histórias com um tempo de desenvolvimento maior, com Wes Anderson refletindo sobre a arte como produto, a relação do artista com sua obra, o amor na juventude, a rebeldia como força política e também sobre autodestruição e o prazer em se descobrir novos sabores na vida.

A relação da literatura com a obra de Anderson sempre foi muito ressaltada, desde adaptações de obras específicas, como é o caso de "O Fantástico Sr. Raposo", longa de animação em stop-motion baseado no livro de Roald Dahl, até obras que se inspiram livremente no universo literário de grandes autores, como "O Grande Hotel Budapeste" e os livros de Stefan Zweig. Essa relação com a literatura, porém, mais do que influenciar os filmes de Wes em temática e conteúdo, corroboram na constituição de sua forma, que vai desde a característica divisão em capítulos presente em muitos de seus filmes, até uma narração e diálogos que remetem à ideia de fabulação literária, como se os escritos tomassem no cinema do diretor uma construção visual que, ao mesmo tempo que preserva a intensidade e impacto dos textos, renasce sob uma narrativa com completa predominância da idealização da imagem.

Em A Crônica Francesa, além da clara relação com a literatura em sua temática, Wes Anderson torna a palavra e seus infinitos usos como o verdadeiro protagonista dessas histórias. De modo até literal, tudo parte do texto, e é incrível como ele faz isso sem abrir mão em nenhum momento do uso da imagem em primeiro lugar. São vários os recursos que evidenciam esse protagonismo da palavra, das legendas que tomam figuração encorpada nas cenas em que os personagens falam francês, até a mitificação de elementos do universo da escrita - como o lápis e a folha, por exemplo. Isso acaba encaixando na ideia de ser uma homenagem a essa literatura que molda o diretor, ao mesmo tempo que é um filme sobre seu próprio cinema, e como o Wes Anderson dá outro olhar para as palavras que ele tanto admira e que gritam por meio da imagem em seus filmes. Ainda que visível, é uma relação que se mostra indissociável na composição de sua linguagem. 


As crônicas carregam em si essa possibilidade de deslumbramento com o cotidiano, potenciada pelo uso das letras. São narrativas que partem da observação do mundo que rodeia o autor, não só influenciadas pelo meio em que são escritas, como também carregam o poder de influenciar o meio para o qual são escritas. Essa linha tênue de literatura e jornalismo em que a crônica se situa, é consequência da ligação entre a realidade furtiva e a inventividade concreta, onde todos os aspectos mundanos despercebidos, convergem para uma existência de aspecto superiormente interessante. Talvez ali esteja o mais evidente papel social exercido por esse tipo de narrativa: na atenção para com o que os outros não observam - ou ao menos fingem não observar -, e na externalização de histórias e acontecimentos que, se não fosse por autores engajados em expor esse retrato ao mundo, cairiam num vão de esquecimento oblíquo ao raiar do dia. O caráter mais literário da crônica, vem da recusa na repetição da realidade tal qual ela é, e na lucidez de um sonho cujo encantamento parte de uma raiz fincada em terra firme. Todas essas características que Wes Anderson incorpora na fabulação de sua própria narrativa, prestam homenagem ao poder de concisão presente nesses escritos, que surgem da vida cotidiana, e que mesmo breves em tamanho, tomam um espaço de grandeza no imaginário do leitor.

As narrativas curtas nos apresentam mundos com a mesma rapidez em que nos retira deles. Ou melhor, nos retira no sentido de que a obra, como extensão das palavras escritas, se encerra por ali, mas consciente de que as ideias manifestadas, continuam a maturar num espectro inatingível da consciência. Talvez por isso, há quem despreze narrativas que demonstram com orgulho sua visível finitude, mas creio que é essa sensação de fim que pode ocorrer a qualquer instante, abrupto e repentino, como a vida é, que infere à essas obras sua mais deliciosa característica: o gostinho de quero mais deixado após o último ponto final - ou no caso do longa de Wes, ao rolar dos créditos - que vem em conjunto com o senso de uma obra completa em sua incompletude, e concisa em seus exageros. Quando os escritores da The French Dispatch escrevem em conjunto o obituário do editor falecido, que serve como despedida da revista que agora se encerra, é também uma despedida daquele universo de Wes para com o espectador. A câmera de Anderson filma a sala onde os autores discutem o que colocar no obituário, um último olhar sobre aqueles personagens fazendo aquilo que amam: escrevendo. Uma lista de autores à quem o diretor dedica o filme surge na tela, com nomes importantes da The New Yorker, como James Baldwin, Lillian Ross, William Shawn, etc. Assim, Wes Anderson fecha a porta de um mundo, abrindo muitos outros mais para o espectador.


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