#

A partir das obras dirigidas por Paul W.S. Anderson na Franquia Resident Evil

Desde a popularização dos chamados videogames já era de se esperar que, eventualmente, adaptações cinematográficas hollywoodianas originadas deste molde começassem a surgir, assim como ocorreu com outros tipos de arte, como a literatura, música, quadrinhos e até pinturas. Contudo, a grande maioria dos jogos virtuais trazidos para o universo do cinema são quase unanimemente reprovados por um público geral. Obras como Mortal Kombat (1995, Paul W.S. Anderson) e Lara Croft: Tomb Raider (2001, Simon West) são alguns exemplos de produções que acabaram não sendo aceitas pelo telespectador comum e por boa parte da crítica. Diversas vezes, quando é anunciado o lançamento de alguma película do gênero, é capaz, até de serem taxados – de maneira historicamente equivocada – como “Filmes B”.



Todavia, fica o questionamento: o que faz um filme instigante? É sempre necessário um roteiro dramático? Complexo? Uma fotografia épica? Ou, quem sabe, uma atuação bem teatralizada? Tudo isso junto e mais um pouco?

Para responder satisfatoriamente a essas perguntas é necessário entendermos, ao menos superficialmente, o conceito de “mise-en-scène”. Aqui, usaremos o termo para designarmos cada elemento cinematográfico – cenografia, atuação, fotografia, montagem, trilha sonora, coreografia etc. – que, juntos, devem se relacionar de feição harmoniosa para explicitar uma ideia universal central de determinada obra, de maneira que um elemento isolado não se destaque ou se oponha a outro involuntariamente, mas que exprimam cooperativamente, a partir da direção, a experiência do filme em questão.



Existe, portanto, uma mise-en-scène única e trabalhada nas realizações de Paul W.S. Anderson na franquia Resident Evil (2002-2016)? Sim! Inclusive, o diretor estadunidense já assumiu, diversas vezes, explicitamente, que é um entusiasta do mundo dos jogos. É possível percebermos, então, que esta paixão influi diretamente na forma como ele vai abordar uma película, não se bastando, apenas, em produzir longas-metragens baseados em games, mas utilizando, assumidamente, das características típicas desta arte em cada um dos elementos cinematográficos em prol de uma mise-en-scène “gameficada”.



Dito isso, o enredo de Resident Evil: O Hóspede Maldito (2002) nos expõe a empresa Umbrella, a maior corporação do mundo, que trabalha em diversos setores, sendo um destes a pesquisa biológica. Contudo, um trágico e estranho evento ocorre e um dos vírus que estava sendo estudado pela instituição é disseminado, transformando todos os empregados que trabalhavam em uma de suas bases subterrâneas em zumbis. Logo nos é revelado a protagonista, Alice (Milla Jovovich), que acorda em um banheiro sem lembranças de seu passado. Ela se encontra subitamente com uma equipe militar que precisa entrar na área afetada e, juntos, necessitam resolver a situação.



Já no início, o filme apresenta uma abordagem que remete bastante aos jogos virtuais. Logo após uma introdução, que lembra uma “cutscene” cinematográfica, nos é apresentado o avatar, que, assim como nós, sabe pouco da verdadeira condição deste universo. Seguimos, lado-a-lado, a perspectiva de Alice; tudo que ela sabe e descobre, descobrimos também, e vice-versa.

A partir daí, tal qual nos games da franquia, têm-se uma certa relação de caminhar e explorar os ambientes que são perpassados. Neste ponto, somos auxiliados pela fotografia escolhida por Paul W.S. Anderson, a partir da mistura de momentos de perambulação entre os lugares com as cenas de ação com cortes frenéticos, mas que também nunca nos deixam confusos ou nos desorientam.



O diretor não mostra nenhum medo em usar todos os efeitos de computação gráfica disponíveis, abrindo um leque de possibilidades para atingir seu propósito. Sendo assim, uma de suas facetas é criar, usar e abusar de um mapa virtual da base em que estão os personagens, revelando, mais uma vez, uma ligação com o game e permitindo que se usufrua uma maior exploração e localização dos ambientes.



As cenas de combate de Alice com os cachorros zumbis, misturando o CGI, a fotografia dinâmica, o slow motion e as piruetas da protagonista, nos dão um gostinho do que estar por vir em relação às suas habilidades. Ademais, em Resident Evil: O Hospede Maldito, é possível relacionar diversas situações que referenciam os jogos – como o primeiro encontro com o animal canino aparecendo no corredor, remetendo a mesma situação do cão saltando para dentro do corredor na mansão no game de 1996 –, o que iria acontecer também de maneira inversa com o Resident Evil 4 (2005), que alude diretamente à cena dos lazers.



De algum modo, a obra de 2002 é a mais realista da franquia: ainda não nos é revelado todos os poderes que o T-vírus pode ter, e os zumbis também remetem a uma forma mais clássica, como os de George A. Romero. A única mutação de fato significativa é a do último inimigo, a quem podemos até nos referir como um Chefão final.



Partindo diretamente em direção ao Resident Evil 4: Recomeço (2010), dado que as duas produções anteriores não são dirigidas por Paul W.S. Anderson, e tampouco seguem a mesma linha e forma estabelecidos na primeira película, acompanhamos a personagem da Milla Jovovich, que está à procura de um suposto lugar chamado Arcadia, no qual estaria totalmente protegido dos perigos do mundo afora.




Se nas obras cinematográficas passadas ainda havia algum pingo de verossimilhança ou explicações para determinados acontecimentos, aqui, isso é praticamente inexistente, o que abre, novamente, infinitas possibilidades narrativas, estéticas, contemplativas e fantasiosas. É assumido quase que plenamente uma feição computadorizada. As paisagens desoladas pelas quais passa Alice são bastante artificiais; inimigos bizarros – vindo diretamente dos jogos – aparecem sem muitos floreios; um avião consegue pousar na cobertura de um prédio; até mesmo uma lógica inerente do próprio universo é rompida.



Quiçá o maior exemplo dessa fissura com a realidade seja a batalha derradeira – que evoca, novamente, a uma dialética de gameplay de Boss final. Tal qual os cachorros que se partem ao meio, uma iluminação total em uma área branca de escassas penumbras, a protagonista que chuta um pedaço de vidro ao ar (sem quebrá-lo) para acertar no animal, que expirará o sangue mais gráfico e plastificado possível; ou o próprio antagonista, Albert Wesker (Shawn Roberts), parecer completamente sintético, com seus olhos vermelhos, cabelo brilhante, velocidade absurda e, o mais fantástico, que é levar uma facada e tiros na cabeça e não morrer – subvertendo a ideia de que qualquer zumbi ou pessoa sucumbi diante da destruição cerebral.



Contudo, uma vez que Paul W.S. Anderson, nestas duas películas, estivesse tentando implementar a sua mise-en-scène gamer, em Resident Evil 5: Retribuição, o diretor concretiza a gameplay perante os nossos olhos! No enredo em questão, Alice acorda em um local misterioso, onde são feitos diversos tipos de experimentações envolvendo clones e simulações, No desenvolvimento da trama, fica evidente que ela precisa escapar de lá imediatamente.



A produção segue um ritmo de passagem de fases e elevação da dificuldade a cada local perpassado, tornando-se, praticamente, um hack and slash cinematográfico. A relação entre câmera, personagem e cenário é a mais direta possível. Tudo pode ser palco, e é, de confronto e destruição. Qualquer tipo de movimentação e pirueta pode acontecer. É imprevisível. Aqui, mais do que nunca, tem-se uma fantasia peculiar e única, desprendida de qualquer convenção. Passa-se a sensação de uma realidade que é controlada, linear, encenada e cinematográfica demais para ser um jogo eletrônico de verdade, mas, ao mesmo tempo, também é imprevisível, fantasioso, exagerado, hiper explorado, computadorizado e de características essencialmente próprias para ser considerado uma mera obra hollywoodiana contemporânea de ação e ficção científica.



Além disso, é em Resident Evil 5: Retribuição que se irá, efetivamente, aprofundar uma discussão mais forte acerca da humanização do que é fruto da ciência e não natural: os clones. Desde Resident Evil 3: A Extinção (2003, Russell Mulcahy), sabemos da existência de réplicas humanas, porém, não há muita ênfase nas suas emoções como indivíduos. Entretanto, no início da realização de 2010, um possível desenvolvimento da relação entre as cópias, subitamente, desmorona, quando todas as cópias da protagonista aparentam terem morrido no confronto de abertura.



A nossa heroína, sem pestanejar, assume, literalmente, desde o começo, uma posição de mãe sobre uma imitação. Ela enxergou ali, naquela criança desamparada, humanidade e sentimentalismo, características que são contrapostas às de um mundo que carece, progressivamente, de valores humanizados. Tendo em vista isso, salvar a menina clone se configura como a única ação plausível da personagem de Milla diante, até mesmo, de uma situação urgente de vida ou morte para a equipe de resgate.



Contudo, no desfecho da saga, em Resident Evil 6: O Último Capítulo (2016), pode-se assemelhar que esta dialética do gameplay, tão explorada nas películas discutidas, tenha perdido um pouco seu rumo. Todavia, W.S. Anderson apenas muda uma parte essencial, anteriormente trabalhada, da sua abordagem “gameficada”. O enredo começa após o fim de uma batalha catastrófica, que não presenciamos. Alice, uma das únicas sobreviventes do confronto, necessita retorna à base subterrânea de Resident Evil: O Hóspede Maldito, em Raccon City, para acabar, de uma vez por todas, com o apocalipse.



Se nas cinco produções anteriores ainda podíamos dizer que estávamos no meio de uma situação apocalíptica, aqui, desde a introdução, já estamos no pós-apocalipse. Até o Q.G. da Umbrella está completamente coberto por poeira, se contrastando com o tom branco e artificial que predominava anteriormente, dando a sensação, como nunca, de fim dos tempos. Desta maneira, a realização pode relacionar-se a diversas outras: o cenário inicial da obra, em que a protagonista luta com a criatura voadora , relembra o RPG eletrônico Fallout – o próprio poder do Dr. Isaacs (Iain Glen) remete a um artifício predominante do jogo –, com um certo minimalismo de Paul W.S. Anderson bastante aplicado em Monster Hunter (2021); a corrida contra o tempo nos carros blindados é no melhor estilo de Mad Max; e a luta contra o monstro dentro da Colmeia, naquele ambiente aterrorizador de experimentos, remete à franquia Dead Space.



Os espaços desoladores, tanto interiores quanto exteriores são, novamente, minuciosamente explorados. Continuamos a seguir, a partir da perspectiva da personagem de Milla, por conseguinte, a condição do extracampo é uma arapuca constantemente esmiuçada nos momentos de tensão e ação – que, agora, possuem cortes mais rápidos e desorientadores do que nunca.

Todavia, é em Resident Evil 6: O Último Capítulo que a discussão de humanização dos avatares chega ao seu auge, dado que o grande plot twist é a descoberta de Alice como, de fato, um clone. Confirmando, assim, esta humanização das imitações, em contrapartida da desumanização dos jogadores, do que é real.



Certamente ainda há muitos caminhos a serem percorridos e estudados quanto à interseção de uma abordagem e de uma mise-em-scène gamer. Portanto, neste sentido, Paul W.S. Anderson talvez seja um grande pioneiro cinematográfico, principalmente por sua contribuição na franquia Resident Evil, mesmo que, hoje, ela seja tão odiada. Há de se perceber, no entanto, alguns filmes que continuam a explorar, de maneira interessante, essa “gameficação” do cinema, tal qual Dredd (2012, Pete Travis) e Monster Hunter.

Nenhum comentário. Seja o(a) primeiro(a) a comentar!