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Sobre as muitas vidas contidas na imensidão do maior bardo de nossos tempos

          “Se eu fosse voltar ao início de tudo, acho que teria que começar com Buddy Holly”.
Assim Bob Dylan iniciou seu discurso de aceitação do Nobel de Literatura, prêmio com o
qual foi laureado em 2016, “por ter criado uma nova expressão poética dentro da grande
tradição norte-americana da canção”, como citado pela Academia Sueca no anúncio do
prêmio. É natural que Dylan, num momento de celebração de sua obra, se voltasse
primeiramente para aquilo que o compõe. Desde sempre foi assim, do jovem franzino que
adentrou numa Nova York fria no início de 1961, com sua gaita estridente e sua fascinação
por Woody Guthrie, à figura mitológica que se tornou Bob Dylan, um homem de muitas
vidas, cuja obra espelha a grandeza do que reflete a essência.



          Foi assim também em 1992, quando num show no Madison Square Garden, em homenagem
aos trinta anos de carreira de Bob Dylan, gênios dos mais diversos gêneros musicais, como
George Harrison, Johnny Cash, Stevie Wonder e muitos outros, cantaram os clássicos
absolutos da carreira de Dylan. Após ouvir todas aquelas homenagens ao seu legado, Dylan
sobe ao palco, e canta “Song to Woody”, canção de seu álbum de estreia em homenagem a
Woody Guthrie. Dylan retorna à figuras como de Buddy Holly, Woody Guthrie e Robert
Johnson, pois por intermédio deles, remete a si mesmo da forma mais autêntica como o
poderia fazer. A influência de Dylan na música popular americana se explica justamente por
esse anseio de fazer sua voz tomar as mais abrangentes dimensões. Ao citar Buddy Holly em
seu discurso de aceitação, Dylan comenta sua admiração pela capacidade de Buddy em
“cantar mais do que em algumas vozes”, esse poder de versatilidade da linguagem se traduz
na carreira de Dylan como um ímpeto pelo renascimento de si mesmo, e da forma como se
relaciona com sua obra.


Bob Dylan no show em celebração aos 30 anos de carreira, 1992.


          É portanto admirável que, ao retratar a vida de Bob Dylan, Todd Haynes em seu filme
Não Estou Lá, de 2007, opte pela desconstrução da figura de Dylan, do que buscar
propriamente algum tipo de definição. Ao apresentar seis figuras distintas que remetem à
fases marcantes da vida do cantor, Haynes dá voz às vozes de Dylan, e nesse processo acaba
por inspirar uma eloquência da magnitude da figura que retrata. Essas muitas vidas que Bob
Dylan carrega dentro de uma só, encontraram meios diversos de expressão nos 81 anos de
idade e 60 de carreira que Dylan completa em 2022. Sendo tomado como um traidor pelo
movimento folk dos anos 60 ao lançar a brilhante e elétrica Bringing It All Back Home,
abraçando o country enquanto leva uma vida rural ao lado dos filho em Nashville Skyline, ou
cantando o que há de melhor na música gospel em sua tríade cristã do início dos anos 80, as
muitas vidas de Dylan carregam em si toda a cerne da música popular americana, e são
responsáveis por moldar muito do que viria a ser a história da música popular de forma
posterior à Dylan.


As seis versões distintas de Dylan em Não Estou Lá de Todd Haynes, filme de 2007.


          Por sempre tomar para si um papel de contador de histórias, o bardo judeu romântico
do Minnesota, como Dylan é referenciado por Caetano Veloso em canção, encontra na
narrativa toda a intensidade de seus versos. Canções de protestos, blues e baladas que
remetem ao passado e futuro americano, e expressam a literatura de mais alto nível contida na
música de Dylan. O trovador que, por meio da tradição, anuncia a chegada dos novos tempos.
O poeta dos versos de amor, que com humildade escreve para uma mulher que não é a ele que
ela procura. O narrador ácido das baladas de homens comuns abocanhados pela insensatez.
As diversas vozes que ecoam no espírito dylanesco ressonam absolutas, imperecíveis, e atuais
como nunca. Um emaranhado de caminhos tortuosos, que constituem na mente do
interlocutor um Bob Dylan que vale por cem ou mais, e que por algum motivo, acaba sempre
levando de volta a Highway 61.


          Em junho de 2020, Bob Dylan lançou seu primeiro álbum de inéditas em 8 anos,
Rough and Rowdy Ways, e provou que há sempre espaço para uma vida a mais. Entre
baladas epopeicas, trágicas e de tributo, Dylan debruça sobre o passado da cultura popular
para constituir a tangibilidade do presente. Utilizando de muitas dessas referências que
remetem à cultura que constitui Dylan, como William Blake, Anne Frank, os Rolling Stones e
inclusive Indiana Jones, surge a faixa “I Contain Multitudes”, que inicia o álbum e serve
como um diálogo honesto de Dylan para com sua própria mitologia. “Sou um homem de
muitas contradições”, afirma em um trecho da canção, referenciando o poema de Walt
Whitman que também intitula a música. Essa reafirmação do que escreveu Whitman, parte de
um artista consciente de seu próprio legado, e que externaliza essa consciência da forma
como sempre o fez, evidenciando as multidões que contém em si.


Capa de Rough and Rowdy Ways, 39º álbum de estúdio de Bob Dylan, lançado em 2020


          Embora haja fragmentação nas várias vidas que Dylan viveu em uma só, seu poder
em uni-las como parte de um inteiro é tão magnífico quanto sua habilidade de torna-las versáteis.
Como um ciclo que as une, as muitas faces de Dylan se relacionam diretamente com as
multidões que o compõem. Uma relação que Dylan expõe de forma exímia na narrativa de
suas canções, de Rimbaud à Woody Guthrie, todos se fazem presente na lírica do maior
trovador vivo, que abraça essas relações como parte fundamental de si mesmo. Muito da
imortalidade que a obra de Dylan exala, tanto em sua musicalidade quanto em sua literatura,
parte justamente desse anseio como artista de nunca formar uma definição, sempre apto a se
desconstruir, e redefinir nesse processo uma visão única de um mundo sempre em transição. Bob Dylan contém multidões, e é ele mesmo a multidão que mais alto fala em meu
peito agora. Obrigado por, juntamente com os muitos que há dentro de você, conduzir os
muitos que há dentro de mim. Ainda sinto ressonar no vento as perguntas emitidas pela
multidão, e parece ser sempre Dylan a soprar o caminho em meus ouvidos.


Bob Dylan fotografado por Jerry Schatzberg, 1966.





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