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Um olhar acerca das características que compõem o cinema intimista da diretora

          Quando Sofia Coppola estreou Maria Antonieta no festival de Cannes de 2006,
grandes expectativas rondavam o longa-metragem baseado no livro de Antonia Fraser, sobre
a vida e morte da última rainha da França. As expectativas proviam não só do caráter
histórico da produção, que tratava de uma das figuras mais polêmicas e importantes da
história francesa, além de ter sido filmado no próprio Palácio de Versailles, mas também pelo
sucesso alcançado por Sofia em Encontros e Desencontros, filme de 2003 que apaixonou os
espectadores de Cannes, e alçou seu nome entre o dos diretores mais interessantes de sua
geração. Foi uma surpresa, porém, quando as manchetes no dia seguinte à estreia de Maria
Antonieta em Cannes, ressaltaram as vaias recebidas pelo filme ao final de sua primeira
projeção para a imprensa. A contrastante recepção de Maria Antonieta em relação aos dois
projetos anteriores da diretora foi um divisor de águas na carreira de Sofia Coppola. Se antes
a diretora utilizava de espaços contidos para conduzir sua mise-en-scène, em Maria Antonieta
há Versailles inteira para Sofia debruçar sua narrativa intimista de garota desvencilhada do
mundo em que se encontra. Além de luxo, muito luxo.


          Com acesso nunca antes recebido ao Palácio de Versailles, Sofia Coppola estava
muito mais interessada no que ocorria no íntimo da difamada rainha, do que propriamente
debruçar sobre o contexto político de sua vida. O filme inicia com uma jovem princesa
austríaca que, após ser prometida por sua mãe ao herdeiro do trono da França, com o objetivo
estratégico de formar laços entre as duas nações, é retirada de seu país de origem e desnuda
de tudo que a remetia ao seu lar. Sofia constrói logo nas cenas iniciais do filme, uma certa
relação de Maria Antonieta com o meio em que está inserida. Ao ser deslocada de sua origem
de forma tão abrupta, a diretora utiliza da inconexão da princesa com a vida em Versailles
para figurar um descontentamento com o cotidiano regrado e preso às obrigações do palácio,
que fogem do espírito jovial e libertário de Antonieta. Essa insatisfação da princesa é também
atrelada à não consumação de seu casamento com Luís XVI, fato que põe em cheque sua
permanência em Versailles e as relações franco austríacas desejadas por sua mãe. Sofia parte
das angústias de Maria Antonieta em sua chegada à Versailles para fabular o ímpeto pelo
excesso que vai eternizar Antonieta na História, mas não sem antes ressignificar esses
excessos pelo íntimo da própria rainha.


A chegada de Maria Antonieta em Versailles no filme de Sofia Coppola


          Esses excessos respondem diretamente ao sentimento de deslocamento que abarca a
vida de Maria Antonieta no palácio. Logo, Antonieta é engolida pelos luxos e festanças como
fuga dessa realidade privativa, e mais ainda, a rainha é entorpecida pelo excesso para se fazer
esquecer sobre qual a parte em si mesma que está faltando. Sofia intensifica na imagem de
Antonieta imersa em meio à imensidão de Versailles toda a cerne de seu cinema, ao
humanizar essa figura histórica e ao situá-la numa ótica que se relaciona com a
incomunicabilidade das novas gerações, Sofia apresenta Antonieta despida de sua narrativa
pautada no contexto político e busca entender o âmago de sua personagem, como as
circunstâncias influenciaram o modo como essa figura foi transpassada para a história, e
nesse processo acaba muito mais interessada em refletir na personagem angústias
existencialistas que moldam o espírito humano desde sempre, do que retratar com fidelidade
histórica a vida da rainha. “Eu não queria me prender à história, mas focar nas relações
pessoais entre essas pessoas. Luís não queria dormir com ela, então ela queria sair e festejar –
como alguém em um casamento ruim indo às compras. Parecia a mesma velha história”, disse
Sofia em entrevista ao New York Times em 2006.


O metódico despertar de Maria Antonieta seguindo os costumes de Versailles


          Com músicas da new wave dos anos oitenta, a trilha sonora é parte essencial de Maria
Antonieta, e é por ela que muitos dos sentimentos da jovem são transpassados à tela, são
músicas que remetem a própria juventude da diretora, e ajudam a formar no imaginário do
espectador a figura jovial e desconexa da realidade que era Maria Antonieta. O uso da música
para constituir a narrativa é marca característica de Coppola, e em Maria Antonieta seu uso
reflete também o anseio da diretora em situar a rainha como uma personagem do agora,
imperecível mesmo após todos esses séculos, e que cuja solidão encontra espaço para se
relacionar com a dificuldade de se sentir pertencido à um mundo moderno cada vez mais
ausente de comunicação. Porém, provavelmente o recurso mais explorado por Sofia Coppola
seja a moda, desde os vestidos em tons pastéis, até os diversos pares de sapatos criados
especialmente para o filme, novamente visando não a fidelidade histórica, e sim peças que
mais refletissem o espírito de Antonieta, principalmente para um público contemporâneo.
Sofia preenche todos os espaços de Versailles com seu estilo único, o tempo no filme de
Coppola é sempre o agora, mesmo tratando sobre uma figura histórica cuja existência está a
séculos de distância da produção do filme, Sofia está interessada na vivacidade, nas festas
regadas a champagne, em como a moda ecoa intensamente por aquele palácio, o jardim do
éden (como escreveu Mark Twain ao visitar Versailles) perdido na terra, mas que serviu como
meio para as libertinagens de uma rainha que sempre pecou por excesso, na ausência de sua
própria essência.


Maria Antonieta observando o nascer do sol com seus amigos após sua festa de aniversário


          Essas características, embora tomem um espectro mais grandioso por conta da
eloquência de Maria Antonieta, se repetem em toda a filmografia de Sofia Coppola. Os dois
filmes anteriores, As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros, apresentam protagonistas
femininas destoantes do mundo que as cercam, desencontradas e ausentes da característica
essencial que as compõem. Em Encontros e Desencontros, há a barreira na comunicação
provida pela localidade estrangeira onde o filme se passa, mas o essencial discutido no filme
é a incomunicabilidade com terceiros, e principalmente, com nós mesmos. O excesso em
Encontros e Desencontros reflete no amor de Charlotte e Bob, com a aparente diferença entre
a fase da vida onde ambos se encontram, mas que serve como um escape daquele mundo de
monotonia e solidão que compunha a vida dos protagonistas antes de se encontrarem. Já em
As Virgens Suicidas, Sofia conjunta essa narrativa atrelada a um estudo acerca da maturação
feminina. As irmãs Lisbon são jovens que crescem em meio à repressão como sinônimo de
amor, a ausência de liberdade e acolhimento se traduzem num afago pelo excesso levado à
consequência máxima na filmografia de Coppola, com o suicídio coletivo das irmãs em
resposta à vida que lhes foi tirada enquanto ainda estavam vivas. É natural então que Sofia
ausente o destino trágico de Maria Antonieta em seu filme, a preocupação se restringe à sua
vida pois é lá que se encontram todas as respostas que o filme procura, é em sua vida onde
Sofia vai encontrar o essencial ausente na vida de Antonieta, e se nesse processo não a
redime de seus pecados, Sofia é feliz tentando demonstrar as semelhanças na desconexão do
íntimo da rainha com sua verdadeira essência, e a de todos nós.


Cenas de As Virgens Suicidas (1999) e Encontros e Desencontros (2003)


          Em Bling Ring: A Gangue de Hollywood, de 2013, quinto filme de Sofia Coppola, a
diretora volta a debruçar seu cinema em torno do excesso. Baseado no artigo “The Suspects
Wore Louboutins”
de Nancy Jo Sales para a Vanity Fair, o filme retrata a história real de um
grupo de jovens de boa situação financeira, que foram acusados de invadirem a casa de
celebridades em Hollywood e roubarem roupas, joias e outros artigos de luxo. A obsessão
pela fama já estava presente na entrelinha dos filmes anteriores de Sofia, em Maria Antonieta,
por exemplo, há a relação de parasitismo da corte em Versailles e uma certa fixação pela
manutenção das posições sociais que compunham aquela sociedade. Em Bling Ring, Sofia
debruça com criticismo sobre a juventude contemporânea e sua obsessão pela imagem, a
influência das redes sociais e do conceito deturpado de fama alimentado por elas.
Muitas das características já comentadas do cinema de Sofia Coppola estão presentes
no filme, mas com uma roupagem diferente. Mais ainda do que em seus outros filmes,
a diretora utiliza de planos curtos que atenuam a vida excessiva e desregrada dos protagonistas,
momentos efêmeros cujo prazer gerado só pode ser substituído por mais desses momentos,
em diversos momentos Sofia brinca com a estrutura dos videoclipes que foram sucesso nos
anos 2000, principalmente os que retratavam a vida de luxo que serviu de modelo para os
jovens do período. É como se dez anos antes da intensa discussão sobre o papel das redes
sociais na formação de patamares irreais de vida, Sofia estivesse nos entregando uma crônica
que dissecava o futuro sem deixar de debruçar sobre os traumas que formam o presente.


          O luxo como excesso se relaciona com a inserção desses jovens na cultura das
celebridades, mas surgem num contexto mais complicado. Um dos jovens da gangue, Marc,
em determinado momento do filme ao ser questionado sobre o que o levou a participar das
invasões às residências, responde citando seus problemas de autoestima e a necessidade de se
sentir pertencido a um grupo. Os excessos que Sofia retrata em Bling Ring se relacionam
intrinsecamente com a ausência expressada em grande parte da filmografia da diretora, fazem
parte de uma desconexão primária com o meio em que vivem, mas são também alicerçados
pela transformação que o meio acomete à esses indivíduos. A ausência do essencial para o
grupo de jovens da gangue se expressa na deturpação da moral, muito em parte
pela própria cultura de fama a qualquer custo propagado na mídia, e como consequência
dessa ausência, mais do que o apego pelo bem material, Coppola também expõe a
glamourização de um estilo de vida corrosivo, mas que é efetivo ao preencher o vazio
deixado pela incompletude do que deveria ser essencial.


Cena dos jovens da gangue Bling Ring em uma boate frequentada por famosos no filme de
Coppola


          Sofia Coppola se provou como uma das mais fascinantes diretoras da atualidade, seu
olhar único sobre as expressões do espírito humano, traduz com profundidade questões que
partem do nosso íntimo, e que ocasionalmente originam os excessos característicos pelo qual
ficaremos lembrados na história. Justamente por partir de uma visão intimista, do interno para
o externo, que Coppola consegue extrair desses excessos o sinal da ausência que torna seus
personagens desconectados de si mesmos, portanto, a ausência da própria essência. Seus
filmes respiram a moda, a música e os sentimentos da diretora, Sofia enxerga em Maria
Antonieta um pouco de cada garota deslocada de si no mundo. Ao encerrar o filme sem
mostrar propriamente o trágico final de sua protagonista, é como se Sofia abraçasse os
excessos de Antonieta como se fossem os seus próprios. Esse exercício de correlação
proposto no cinema de Coppola é a síntese que torna tão impactante o poder de sua imagem,
e que serve como alento para a essência perdida do espectador interessado em observar o
mundo pelas lentes da diretora.


O último quadro do filme Maria Antonieta, de Sofia Coppola

Há 2 comentários.

  • Por Krislaine Lycurgo quarta, Dia 11 de maio de 2022 às 00:00h

    Quando a Maria Antonieta chega no Palácio ela fica tão deslocada ao ponto que algumas cenas chegam a incomodar! Ao longo do filme ela não encontrou "o seu lugar" mas se contentou em preencher espaços vazios com luxo... Acho que ao retratar a Antonieta como uma pessoa que está tentando se adaptar as imposições da vida a diretora falou um pouco sobre cada um de nós. Eu amo esse filme! ????

  • Por alice terça, Dia 10 de maio de 2022 às 00:00h

    ótimo texto, ótimas informações. Parabéns ao autor.

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