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por João Lucas Casanova

          A figura mítica do cowboy estadunidense permeou o imaginário popular de toda uma
geração da humanidade. Com o advento do cinema no início do século XX, e um período
sucessivo de booms econômicos por conta da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos da
América se tornara o maior polo cultural do século. Hollywood deve muito da magnitude que
sua indústria cinematográfica se tornou às políticas imperialistas do país desde o século XIX,
que foram efetivas justamente em transpor a recente história do país ao mais alto patamar de
glória, e nesse processo todo, universalizar os feitos desse povo como se fossem de todos nós,
mas não são, e nunca realmente o quiseram ser.


          A história do faroeste enquanto gênero, se confunde com a do próprio cinema. Não
haveria cinema como o conhecemos, se não houvesse antes algo do qual se merecesse
idealizar, como a conquista do oeste para os estadunidenses. O francês André Bazin, um dos
mais importantes críticos de cinema de todos os tempos, escreveu em 1953 no texto "O
western ou o cinema americano por excelência”
, sobre a relação entre a popularidade do
gênero e o exercício de mitificação que o mesmo propõe. O faroeste é em sua essência, sobre
os mitos que compõem uma nação, desde seu nascimento, perpassando por suas conquistas, e
no meio de todo esse processo traçar heróis e vilões, civilizados e selvagens, esse tipo de
dicotomia que o cinema carrega em sua cerne narrativa, mas que é muito provindo da própria
História, que limitada à narrativa do vencedor, parece desistente de recorrer às injustiças
cometidas em todo processo civilizatório. E no entremeio, o resto do mundo observa
boquiaberto os bangs-bangs em meio à areia, a morte justificada pela honra, o amor que
quase sempre tem fonte no ódio, o medo da violência como resposta à incomunicação. Talvez
porque isso em parte, acaba sendo sobre todos nós também. Os cenários podem variar, as
culturas também, mas é incontestável a presença dessas características de mistificação, em
tudo aquilo que nos torna seres partes de uma conjuntura social. Talvez os mitos nasçam
todos num mesmo lugar, num setor do inconsciente que esteja entre o mundano e o irreal, ou
talvez todos esses sistemas de opressão e corrosão humana sejam o mesmo em todo lugar, e
os comportamentos agressivos em resposta aquilo do qual não temos conhecimento, também.


"Três Homens em Conflito" (1966), Sergio Leone


         Mas em que momento a figura masculina do oeste americano se distancia de todos
nós? Acredito que a resposta esteja justamente onde as semelhanças começam. Quando o
cinema toma para si esse caráter popular - sendo um dos mais efetivos meios de
democratização das massas devido o uso da imagem aliado ao som -, o faroeste “puro” como
Bazin viria a classificar (ou seja, aquele realizado nos Estados Unidos), se encontra em
iminente declínio de popularidade. O mito do cowboy colonizador já não encontra mais tanto
espaço numa arte cada vez mais globalizada, em parte pelo fim da própria inocência
conveniente ao início da linguagem cinematográfica, mas muito também pela necessidade de
um herói que abrangesse as lacunas culturais que o gênero criou.


          Essa demanda cultural nasce num contexto historicamente conturbado: a guerra fria,
numa das mais recentes fases do imperialismo estadunidense, onde a dominação no campo
cultural significava dominação por si só, já que esse mundo conectado serviu como
hospedeiro ideal para o estabelecimento de uma indústria que fetichiza a mercadoria como
bem cultural, e sendo o cinema seu meio mais acessível, surge dali um reflexo do que o
mundo espelha pela lente da câmera. Logo se torna simbólica a aproximação da linguagem de
cinema faroeste, cerne do cinema estadunidense e da era de ouro de Hollywood, em muito do
que se produzia de cinema novo ao redor do mundo na época. Com o esgotamento do gênero
em Hollywood, outro grande polo cinematográfico abraça para si o faroeste e o ressignifica
perante o público: a Itália e o faroeste spaghetti, filmes produzidos no país durante pouco
mais de uma década, entre o fim dos anos cinquenta e o início dos anos setenta. Eram em
grande parte das vezes, produções de baixo custo e filmadas em lugares que referiam ao oeste
americano, utilizando de uma linguagem que intensificava os estereótipos do cowboy bruto e
de sua relação com o espaço sorrateiro que o oeste representava. O subgênero resultou numa
ampliação de público para um estilo que havia se tornado desgastado, muito em parte por
abandonar a mitologia do nascimento de uma nação e da conquista do oeste da era clássica do
faroeste, e focar num estudo de personagem sobre os que sempre protagonizaram essa
história, o homem desnudo do mito, o cowboy em seu estado natural de dubiedade moral.


          O faroeste spaghetti estabelece muito do que viria a se tornar o faroeste e sua relação
com o mundo até os dias de hoje. Vários outros movimentos do período, como o Cinema
Novo no Brasil, utilizaram de elementos do faroeste para pautar suas próprias narrativas
culturais. Glauber Rocha, diretor proeminente do movimento, utilizou em seus filmes a
conjunção de elementos advindos do faroeste, como a nocividade do espaço, a relação da
terra com o funcionamento da vida social (no caso do faroeste estadunidense, o velho oeste,
no cinema de Glauber, o sertão nordestino), a opressão advinda pelo forte senso de injustiça
num ambiente desigual, e a relação dos mitos com o povo, uma conexão tão intrínseca que
não poderia ser mais efetiva se não pela fragilidade que é acometida. É importante entender
como o faroeste universaliza suas situações, personagens e mitos, sem necessariamente se
apropriar da forma que estes elementos se mesclam à culturas distintas. O fator
universalizante está justamente na possibilidade que essa figura do oeste americano têm de se
reestruturar, sem nunca deixar de perder sua essência dubiamente masculina, a sina e a glória
está justamente na mitificação e desmistificação do homem por trás do mito, e do mito por
trás do homem. 


"Por Um Punhado de Dólares" (1964), Sergio Leone


         Essa saturação do gênero no fim dos anos cinquenta, pode ser edificada no
decaimento do próprio homem branco, diante da necessidade de fazer um mundo inteiro ser
representado na tela do cinema. A década de sessenta é um cenário revolucionário
efervescente de transformação, os direitos civis para a população negra e marginalizada
estouram como uma bomba que grita com urgência que os tempos estavam mudando,
precisavam mudar. E de repente o oeste soa tão esgotado de si mesmo, essa qualidade de
renovação do mito americano que o cinema proporcionou estava ausente. No mundo fora do
estúdio de gravação se acentuava uma ressignificação do próprio povo americano que durante
todos aqueles séculos fora renegado, e o faroeste pareceu se esquecer da sua capacidade de
retratar os desvalidos, e do seu próprio poder de transpor para a tela do cinema, o reflexo
mais brutal e verdadeiro da sociedade estadunidense.


         Com o passar das décadas, o espaço do faroeste no cinema vai cada vez mais
abandonando um papel de protagonismo, as produções se tornam mais escassas, e a
popularidade do gênero nunca retornou ao patamar que possuía na era de ouro do cinema. O
oeste parece como um devaneio distante do espectador contemporâneo, que agora trata todos
aqueles mitos como um simples traço do passado, mas não o verdadeiramente é. Os traumas
que permeavam o oeste americano ainda são os mesmos cortes que dilaceram a sociedade
estadunidense de hoje, são cicatrizes como as que carregam os cowboys nas cenas de
bang-bang do velho oeste, tão expostas na pele, que soa mais natural abraçá-las como parte
eterna do corpo, do que tratar propriamente a ferida.


        Nesse contexto de dissecar o oeste além do mito, e tornar visível o trauma que molda
toda a ética moral dos faroestes clássicos (e consequentemente, a própria sociedade
estadunidense), surgem diversos filmes de faroeste revisionista, que buscavam entender as
nuances que formavam essas concepções sociais que perduram até os dias de hoje. Esses
filmes surgem com a queda do faroeste clássico e duram até a atualidade, onde cada vez mais
diretores e diretoras, de diferentes nacionalidades, propõem um estudo sobre o oeste e seus
impactos na formação ocidental. Clint Eastwood dirigiu alguns dos mais importantes filmes
do subgênero, e em Os Imperdoáveis, de 1992, Clint retrata um cowboy fora-da-lei
aposentado, que se vê obrigado a retornar aos tempos de pistoleiro para ter de alimentar seus
filhos, e em um último trabalho, matar o assassino de uma prostituta de um saloon do velho
oeste. Clint posiciona o típico herói americano em meio à ambiguidade moral que o
acompanha desde o início do gênero, mas dessa vez com a grande diferença de ter
consciência de seu próprio mito, é como se o faroeste estivesse frente a frente com tudo
aquilo que o formou, um acerto de contas do gênero com si próprio, e sendo assim, é como se
tornasse nu, todo os mitos de sua própria formação, e os da sociedade também.



"Os Imperdoáveis" (1992), Clint Eastwood


          Embora o faroeste tenha sido cada vez mais revisitado por óticas distantes das que
costumeiramente eram mostradas no período clássico do gênero, uma ala ainda muito
conservadora da indústria cinematográfica, parece reproduzir os mesmos preceitos
preconceituosos e xenofóbicos que resultaram no declínio do gênero décadas atrás. Um caso
recente é o filme Ataque dos Cães, de Jane Campion, diretora neozelandesa que dirigiu o
filme faroeste revisionista sobre a masculinidade tóxica e homossexualidade reprimida no
oeste americano. O filme sofreu ataques de cunho preconceituoso do ator Sam Elliott, que
desmereceu a legitimidade da produção enquanto faroeste, devido o local de filmagem (Nova
Zelândia), e pela nacionalidade da diretora, além do que o próprio chamou de “evisceração do
mito americano”
, em referência a discussão sobre repressão da sexualidade no velho oeste
que o filme propõe. Figuras como a de Sam Elliott, embora possam soar como uma minoria
diante do progressismo cultural atual, é uma parcela barulhenta cuja existência reflete em
certa ineficiência do faroeste em reprimir esse anseio à intolerância, que o mito do
nascimento de uma das nações mais imperialistas do mundo sempre evocou. O tiro do lema
imperialista “América para os (norte-)americanos” parece ainda ricochetear como uma bala
perdida na sociedade que John Kennedy um dia afirmou ser uma nação de imigrantes.



"Ataque dos Cães" (2021), Jane Campion


          O faroeste não deixou de transparecer de forma contundente, da tela do cinema para o
olhar do espectador, o funcionamento do mundo contemporâneo, tanto pelos traumas que o
gênero retrata, que intrinsecamente se relacionam com o nascimento da própria nação e
perpetuam até a atualidade, quanto pela influência do faroeste na concepção identitária dos
mitos que estão presentes na cerne da moral ocidental. Desde a formação conceitual e
imagética de seus mitos, que remetiam à própria figura de masculinidade do mundo até então,
perpassando pelo processo de revisão metalinguístico do gênero após sua derrocada, o
faroeste reproduziu o mundo como uma vitrine, justamente por serem suas diferentes fases,
fruto das transformações culturais deste mundo. Essa universalidade de seu mito se explica
por uma relação de causa e efeito, o faroeste abraça o passado para entender o presente, e no
meio desse processo, o cowboy modifica o âmbito cultural, da mesma forma que a rispidez
do oeste modifica a figura do homem para dar espaço ao mito.


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