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\\\"Tem três tipos de pessoas no mundo: os ricos, os pobres e os que ficam entre os dois\\\"

"Tem três tipos de pessoas no mundo: os ricos, os pobres e os que ficam entre os dois"

Domino Harvey em “Domino” (2005)


Desde o seu primeiro longa–metragem “Fome de Viver” (1983) até o último “Incontrolável” (2010) o cinema de Tony Scott parece ter uma fascinação em acompanhar e reproduzir tendências visuais e de estilo de um cenário pop de sua época. Porém o interessante é que diferente de diretores que acabam se resumindo a apenas usarem a reprodução como um jeito de chamarem atenção para si e se mostrarem, o cinema de Tony usa ela sempre como uma fonte de criação inesgotável para conduzir uma força característica bem particular dos seus filmes dentro dos seus objetivos com as sensações e comentários que deseja.


Quando Tony começou a dirigir filmes, o seu irmão Ridley já era um nome importante em Hollywood tendo dirigido longas que ficaram icônicos como “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979) e “Blade Runner” (1982), mas os dois tiveram o mesmo começo estudando Artes na Inglaterra se focando na parte de cinema e depois indo trabalhar com publicidade até seguirem seus sonhos de serem diretores de cinema, ambos também demonstram um domínio estético e técnico grande, porém enquanto muitas vezes o cinema de Ridley se caracteriza com uma certa distância do material que tem em mãos, o cinema de Tony se destaca por ser extremamente caloroso.

Enquanto Ridley tenta lidar com diversos tipos de gêneros e estilos, Tony depois do seu começo com um filme de terror investiu no cinema de ação e as suas variações (passando por filmes que lidassem com o policial, o romance, a comédia, a espionagem, o thriller político, a ficção cientifica, filmes de esporte, o drama de personagem, etc, mas sempre tendo a ação como um motor que junta tudo) sempre com marcas estilísticas muito identificáveis e fortes. É louvável a inquietação e versatilidade de Ridley enquanto realizador, porém também acaba ficando evidente uma irregularidade e uma burocracia ao fazer seus filmes, coisas que passam longe do cinema de seu amado irmão mais novo.



Os dois irmãos trabalham e trabalhavam no mainstream cinema norte-americano em grandes blockbusters com extensos orçamentos esuper astros porém enquanto Ridley busca um cinema mais clássico e longas vistos como de “prestígio”, Tony já parece não se interessar por isso se focando num cinema que usa do que é visto como de “mal gosto” e “excessivo” para enriquecer o seu material. Por esse preconceito com o seu tipo de cinema e interesse Tony acabou não sendo reconhecido em vida, mas o tempo revela o tamanho imenso de seus filmes.


O já citado calor humano é o que une a ação frenética dos seus filmes com a habilidade em que Tony trata seus personagens e seus atores. Nos seus filmes existe um uso excessivo de imagens e sons que vão aparecendo na tela e se sobrepondo à outras imagens e sons trazendo um teor sensorial e experimental para um cinema de entretenimento comercial onde inserções visuais de ambientes, horários, outras cenas, planos aéreos e divisões de tela vão e voltam ilustrando situações e quem são os seus personagens, músicas que não param de tocar, apropriações de estilos diferentes para dizer o quer com isso, repetições constantes de diferentes ângulos da mesma cena, cortes muito rápidos que acompanham uma montagem ágil e por aí vai, tudo isso causa uma espécie de poluição visual que nas mãos de um diretor sem talento seria só um tique ou só algo pra se mostrar, porém Scott consegue conciliar essa poluição visual que vai crescendo e crescendo conforme os seus filmes com justamente o sentimento energético e frenético que ele deseja trazendo esses excessos dentro de uma lógica de somatória de sentimentos que se destacam muito dentro do caos de uma ação explosiva que ele busca e dos seus personagens.



Tony sempre acompanha uma estilização pop bem característica de cada momento por qual se interessa: enquanto “Fome de Viver” é um filme marcado por uma estética de cores neon que une uma atmosfera gótica com a década de 80 e uma sensualidade latente que vai marcar todo o cinema de Scott, “Top Gun – Ases Indomáveis” (1986) e “Um Tira da Pesada 2” (1987) seguem essa linha de serem filmes que celebram uma estética muito especifica dos anos 80, mas indo para o lado onde eles se destacam por uma fotografia ensolarada e quente casando com as suas locações e o estilo de vida de seus personagens, enquanto filmes como “Amor à Queima Roupa” (1993) e “O Último Boy Scout” (1991) continuam com as paixões especificas de Scott com um cinema muito próximo da estética de videoclipe do auge da MTV cada um com as suas características especificas (o primeiro como um filme de fuga de dois criminosos vivendo uma história de amor que vai mudando constantemente durante a sua duração e o segundo como um “buddy movie” enquadrado dentro da dramaturgia que o roteirista Shane Black começou no “Maquina Mortífera” com as habilidades estilísticas de Scott em filmar ação, comédia e o esporte), e a sua fase final com “Chamas da Vingança” (2004), “Domino” (2005), “Déjà Vu” (2006), “O Sequestro do Metrô 1 2 3” (2009) e “Incontrolável” (2010), onde ele radicaliza o seu estilo por completo em filmes onde a câmera digital só deixa as suas características mais livres e viscerais.


A lógica de sentimentos se somando não aparece imageticamente em seus filmes, isso é um sentimento presente em toda lógica interna de seu cinema, é comum por exemplo os seus filmes serem divididos por vários núcleos de personagens que estão separando até os momentos que eles vão se juntar ou se cruzar numa grande explosão muitas vezes marcada por um tiroteio como o que acontece em “Amor à Queima Roupa”, “Inimigo de Estado” (1998) e “Domino”. O talento em executar essas sequências vem pelo fator que a preocupação máxima de Scott é em como criar uma atmosfera visual e cenas de ação que vão traduzir a sua busca por um mundo onde o caos é traduzido de uma maneira quase poética e romântica dentro das suas explosivas sequencias de ação. As tramas e os personagens de Scott muitas vezes são simples, caricatos, farsescos ou absurdos porque ele trabalha com o exagero para encenar exatamente o que quer e consegue encontrar o nível mais alto de forma na hora de filmar e narrar isso. E isso exige uma complexidade muito grande das habilidades de um diretor. E nem por isso deixa de existir uma preocupação e atenção surpreendentemente emocional de Scott com os seus personagens e as suas relações dentro da dramaturgia de seus filmes.



Tony Scott é um diretor muito romântico, que vive uma relação de afeto e amor gigante com seus personagens, pelos seus atores (não é à toa que nos créditos finais de “Domino” os atores são creditados com o primeiro nome) e filme ele as relações que vão formando com muita atenção e proximidade. Por isso existe algo poético, familiar, afetuoso ou profundo em todos os laços afetivos que vão se formando nos seus filmes seja o de Denzel Washington – o intérprete e parceiro mais genial de Tony Scott – com Paula Patton em “Déjá Vu”, Washington com Chris Pine em “Incontrolável”, Washington com Dakota Fanning em “Chamas da Vingança”, o ódio crescente entre Washington e Gene Hackman em “Maré Vermelha” (1995), o trio de caçadores de recompensas de “Domino”, o triangulo amoroso de “Fome de Viver”, as relações construídas por Tom Cruise e Bruce Willis em “Top Gun” e “O Último Boy Scout”, Will Smith e Gene Hackman em “Inimigo de Estado”, Robert Redford e Brad Pitt em “Jogo de Espiões” (2001), Christian Slater e Patricia Arquette em “Amor à Queima Roupa”, entre outros.



O tamanho da paixão que Scott tem pelos seus personagens é tanto que em “Amor à Queima Roupa” por exemplo o roteiro de Quentin Tarantino acabava o filme com Clarence (o personagem de Slater) morto e Alabama (a personagem de Patricia) sozinha, porém Tony decidiu mudar isso e deu um final feliz para os personagens justamente porque foi se apaixonando por eles com o passar do filme e não acharia justo não dar um final feliz a eles. O que faz total sentido considerando que “Amor à Queima Roupa” é uma celebração do amor insano e intenso dos dois personagens que destrói tudo de externo ao redor deles, porém nunca ameaça a relação interna entre os dois protagonistas, por isso o filme acaba funcionando ainda mais com um final que celebra esse romantismo estranho, porém puro.


Esse efeito dicotômico que o cinema de Scott tem aparece em vários níveis: ao mesmo tempo que existe essa poluição anárquica da construção cinematográfica ele domina isso completamente como um maestro por fazer todos os elementos dos filmes girarem ao redor desse tom, são filmes que tocam em questões políticas e sociais mas tem um bom–humor e um sarcasmo constante na forma de traçar caricaturas propositalmente ridículas, ao mesmo tempo que ele faz blockbusters cheios de ação o seu tratamento com imagens é intensamente sensorial o que causa um efeito quase hipnótico, seus filmes são cheios de uma violência exagerada e gráfica feita de maneira estilizada mas ele defende os seus protagonistas e sempre os trata de maneira sensível admirando e vendo valor, afeto e fascínio até nos tipos mais doentes, e por aí vai. Essa explosão de sentimentos se configura também na forma que assim como Tony Scott acompanha e toma para si as tendências e ferramentas de sua época, ele também toma os conflitos políticos e sociais como fonte de observação. Seja a herança da Guerra Fria muito presente em filmes como “Maré Vermelha” e “Jogo de Espiões”, a ameaça da extrema–direita no mundo da tecnologia em “Inimigo de Estado”, o mundo sujo, caótico, paranoico, selvagem, cheio de horrores e sem nenhum filtro dos pós 11 de Setembro em “Chamas da Vingança”, “Déjá Vu” e “Domino” (2005) e o conflito trabalhista do proletário e o capitalismo em “Incontrolável”.


Se estivesse vivo seria interessante pensar como Tony Scott conseguiria desafiar e se adaptar a um cinema norte–americano comercial que – claro com as suas notáveis exceções – está cada vez mais higienizado. Como será que seria um filme de Tony Scott hoje em dia num tempo onde os blockbusters são “limpinhos” e os ditos “blockbusters diferentes” tem uma anarquia “limpinha” e controlada? Enfim são questões impossíveis de serem respondidas, o que resta é lamentar que alguém como Scott tenha nos deixado tão cedo em 2012 e antes de ocupar o patamar de gênio que sempre foi. Seus filmes continuam eternamente, sempre por aí, para serem vistos e revistos. É um desses diretores que prova que o que pode parecer na superfície “genérico” ou “comum”, pode guardar coisas muito únicas e poderosas quando você a vê sem preconceitos só pelo o que ela é e até onde ela vai. E Scott foi muito longe.


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