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Espelhos da Imagem

Em certo momento de Tár, dirigido por Todd Field, a maestrina - ou "maestro", como ela mesmo prefere ser designada - Lydia Tár (Cate Blanchett) adentra em um longa discussão com um de seus alunos sobre a distorção entre o artista e sua obra partindo do ponto que o próprio se vê incapaz de reconhecer o virtuosismo do trabalho de Back por conta de sua conduta misógina. Nesse segmento, o cineasta mantém o plano por um longo período, percorrendo cada pedaço do debate com muita atenção enquanto professora e aluno caminham e se posicionam em pontos diferentes do espaço, intensificando constantemente o nível da argumentação de ambos pelo requinte da câmera em concretizar tal passagem do roteiro. Além de um sequência precisamente realizada, esse trecho diz muito sobre a maneira como Field faz de sua protagonista do centro de todas as engrenagens por trás do seu andamento narrativo.



De maneira resumida, é a partir da essência de Lydia Tár que o filme ornamenta cada uma de suas imagens, em uma espécie de espelhamento onde o perfeccionismo da maestrina está embutido nessa direção de requinte. O que seria encarado como uma manobra fácil para se destacar na temporada de premiações - e que confesso ter soado de tal modo no primeiro instante - se revela um aspecto fundamental para que a ascensão e queda de sua protagonista ganhe o impacto necessário. Sua ornamentação imagética vai estar firmada no estado de espírito da personagem de Blanchett: encontra-se equilibrada, em sua habitual postura de controle e pragmatismo, a câmera e a linguagem da obra estão em comunhão com uma dinâmica mais rígida de planos estáticos e sinuosos, sempre em busca de criar - e evidenciar - a limpidez de seus ambientes milimetricamente calculados. 


A própria casa de Lydia Tár é constituída de padrões metódicos, onde cada um dos objetos dispostos parecem estar em uma ordem bem rigorosa, desde as plantas ao lado de seu piano até mesmo o sofá em sua sala, o acinzentado das paredes até a escuridão que acomete os espaços da casa, mesmo nas sequências diurnas ou iluminadas durante a noite, algo que sempre transmite essa métrica quase obsessiva e perfeccionista que a protagonista busca intuir até em sua vida privada. Em contrapartida, o apartamento que utiliza em alguns instantes, principalmente em seus momentos de quase insanidade - vide a cena da família de um dos seus vizinhos - é curiosamente menos esteticamente austero e mais sobrecarregado em sua disposição de objetos pelo ambiente, justamente como expurgo dos sentimentos que a mesma libera naquele cenário mais amplo, embora curiosamente menor em comparação a residência que compartilha ao lado de Sharon (Nina Hoss), seu cônjuge.


Seguindo a lógica, o modo que Field e a montadora Monika Willi estabelecem cada corte e as transições de um ambiente para o próximo na montagem acompanham o compasso minucioso de sua protagonista, quase sempre deixando lapsos pelo caminho, da sensação ambígua de uma imagem para a outra, que faz da permanência daquela ainda mais intensa na mente do espectador. Nesse sentido, Tár estaria mais inclinado para "Trama Fantasma" justamente por lembrar o modo que Paul Thomas Anderson fazia a sua narrativa funcionar, traçando cada imagem através da perspectiva sistemática e melancólica que Reynolds enxergava o mundo ao seu redor. E se naquele filme, Anderson possuía o trunfo de orquestrar o magnífico desempenho de Day-Lewis, o mesmo ocorre com Field ao lado de sua estrela central: Cate Blanchett. 




A intérprete faz dos tiques e maneirismos de sua Lydia Tár algo essencial para a narrativa do cineasta, integrando perfeitamente a superioridade com que enxerga a si mesmo ao controle que tem de tudo ao seu redor, transmitindo isso com sua postura firme e seu olhar altivo; a partir do ponto que deixa de posicionar tudo em seu cubículo metódico, o histrionismo toma conta e o requinte de sua composição dá lugar às explosões de raiva e indignação que, sim, soam “oscarizáveis” demais para serem ignoradas - por bem ou por mal.

Inclusive, Tár curiosamente perde seu compasso a medida que a própria protagonista deixa de ter autoridade nos arredores de sua vida, desvirtuando um pouco do fascínio estabelecido por Todd Field e apertando na mesma tecla quando poderia ter encerrado com mais objetividade e menos “esperteza” - destaque para a tola ironia contida no encerramento - , mas não sem antes deixar no espectador a sensação de ter visto uma experiência curiosa e com imagens que exprimem perfeitamente o domínio da protagonista com relação a tudo que a cerca e as consequências no instante em que perde a capacidade de gerenciá-las.


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